Por Ana Manhani
Catracas que não raro forçam a dizer: “Me desculpe, doutora, mas eu não tenho mais como pagar o ônibus para trazer meu filho pra senhora atender”.
Michel tem dez anos e ainda mal consegue ler o nome no letreiro do ônibus. Na escola, por mais que os professores se esforcem para alfabetizá-lo, não se observa muito progresso. Orelhas atentas também conseguem perceber que ele fala pouco porque não consegue pronunciar todos os sons como um garoto de sua idade. Cada dia que passa suas dificuldades ficam mais evidentes e ele vai perdendo a voz ativa. Mas hoje finalmente ele foi convocado para iniciar a terapia com fonoaudióloga, agora ele vai ter a chance de superar estas dificuldades.
Iasmim tem sete anos e um diagnóstico psiquiátrico. Sua família está muito feliz, pois seus surtos diminuíram desde que ela começou a ser atendida na clínica psicológica. Ela já até começou a frequentar a escola regular e fez duas amizades.
Milena nasceu sem poder escutar o mundo, vive num silêncio ensurdecedor que a impede de aprender a se comunicar com palavras. Mas, graças à persistência de seus pais, ela acaba de ser convocada para realizar um implante coclear. Mesmo tendo apenas dois anos de vida ela já está habituada ao ambiente hospitalar, pois a cada quinze dias passa em alguma consulta e hoje a equipe de profissionais da saúde explicou a seus pais que após a cirurgia ela irá precisar passar por terapia semanal. Afinal, somente com muita estimulação ela irá conseguir lidar com os sons e aprenderá a falar.
Estas três histórias pertencem a famílias que dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS), o que significa que na maioria das vezes há longas filas de espera para conseguir atendimento e poucos locais que realizam atendimentos específicos. Como o SUS é um sistema jovem (ele foi criado pela Constituição Federal de 1988) e prevê que toda a população brasileira tenha acesso ao atendimento público de saúde, não é difícil imaginar que ele ainda tenha falhas, ainda mais quando a iniciativa privada aproveita brechas para disseminar a ideia de que saúde gratuita equivale a risco de vida.
Um de seus princípios mais interessantes (e muito mal compreendido) é o da hierarquização, que organiza os serviços de saúde por nível de complexidade. Assim, um atendimento básico é oferecido amplamente à população e somente em caso de real necessidade um cidadão será encaminhado para um atendimento mais complexo.
Porém, este princípio faz crescer um problema muito básico: o do transporte. Se o posto de atendimento costuma ser próximo de casa, geralmente o centro de especialidades não é. Isso faz com que cada pessoa que precisa deste tipo de atendimento tenha que se deslocar grandes distâncias. Este tipo de questão não é vista como grande problema quando o atendimento ocorre poucas vezes, como é o caso das consultas médicas. Mas quando se trata de um atendimento terapêutico (aquele que ocorre semanalmente com a fisioterapeuta, com a fonoaudióloga, com o psicólogo, com a terapeuta ocupacional, por exemplo), aí a história muda.
Se pensarmos na cidade de São Paulo como palco para esta história, não é difícil de imaginar que o atendimento que deveria ser a solução passa a ser mais um problema. Afinal, o custo indireto de um atendimento no SUS chega a se tornar inviável.
Vamos retomar os nossos personagens para entender isso um pouquinho melhor. Imaginem que o Michel começou a frequentar terapia toda semana; como ele ainda é criança, sua mãe precisa levá-lo. Eles pegam dois ônibus para ir, demoram cerca de duas horas e ele ainda chega atrasado, perdendo dez dos quarenta e cinco minutos de terapia.
A mãe da Iasmim conheceu os pais da Milena no ônibus a caminho da terapia; eles precisam pegar dois ônibus e ela, pelo menos três. Eles comentam sobre suas expectativas a respeito da filha e ela conta como sua vida está mais tranquila. Enquanto as crianças estão em atendimento, os pais esperam na recepção e ouvem relatos de outras vidas. Os mais novos não compreendem a reclamação de uma mãe sobre a distância, eles acham que pela saúde do seu filho qualquer esforço é pouco.
Com o passar das semanas e dos meses fica bem fácil perceber que essa convicção vai enfraquecendo. A maior parte das famílias gasta no mínimo duas vezes mais tempo no transporte do que sendo atendida, e o dinheiro gasto com a passagem do transporte público começa a pesar no orçamento. A mãe do Michel começa a deixá-lo ir sozinho, pois assim ela economiza e consegue dinheiro para que ele possa ir o mês todo; a mãe da Iasmim pede dinheiro emprestado a uma colega; a Milena passou a ser trazida apenas pelo pai, que consegue andar mais tempo com ela no colo e economiza o dinheiro de uma condução.
No fim de seis meses, o Michel acaba abandonando a terapia. Ele dá adeus à chance de conseguir se comunicar melhor e de ter um bom desempenho na escola. A mãe da Iasmim teve problemas no trabalho, Iasmim teve muitas faltas na terapia e perdeu a vaga, tendo que voltar para a fila de espera por sabe-se lá quanto tempo. Os pais da Milena já não sabem mais como economizar para garantir que a filha possa escutar.
Cada uma destas histórias é ficção, mas as personagens estão nos pontos de ônibus, nas filas de espera, apertados nos corredores dos trens em busca de uma vida mais saudável e mais digna. E ao invés de acolhimento, o que eles costumam encontrar são catracas; catracas que impedem seu acesso a um transporte que os leve aonde a vida os obriga estar, catracas que barram sua entrada nos locais que gostariam de frequentar, catracas que não raro os forçam a dizer “Me desculpe, doutora, mas eu não tenho mais como pagar o ônibus para trazer meu filho pra senhora atender”.
Este artigo faz parte do dossiê temático DOSSIÊ: Campanha Tarifa Zero 2011
Fonte: http://tarifazero.org/
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