QUE A CRÍTICA SE ELEVE DA TERRA AO CÉU
Tomás Lima Pimenta*
“Ah, quanto tempo mais vou ficar esperando uma mudança radical”
Gustavo Amaral em “Samba pra BH”
Já não se trata de esperar. Após a realização da “Marcha Fora Lacerda”, no dia 24 de setembro, torna-se necessário fazer uma análise do movimento e da conjuntura que permitiu seu surgimento, além de um balanço da manifestação e uma reflexão sobre as perspectivas e dos desdobramentos possíveis.
O objetivo deste texto é fortalecer o diálogo entre os setores que compõem o movimento, fomentar a troca de idéias e tornar consistentes os posicionamentos. Considerando que só é possível fazer o movimento avançar, através de debates abertos, democráticos e plurais.
O movimento “Fora Lacerda” é uma resposta a uma série de medidas adotadas pela prefeitura nos últimos dois anos e meio de administração do prefeito Márcio Lacerda (PSB), empresário e ex-militante de grupos de combate à ditadura, que surgiu de um acordo entre o PT e o PSDB. Esse acordo segue uma lógica de alianças do governo federal, em que os partidos do chamado “bloquinho”, composto por PSB, PDT e PCdoB, tentam se arranjar através de prefeituras e governos.
A questão central em que se assenta o movimento é o choque entre duas concepções diferentes de cidade: a primeira da cidade como espetáculo, livre das manifestações culturais, que se transforma em mercadoria, empresa e pátria; em outras palavras, da cidade como valor de troca (1). A outra concepção, que defendemos como movimento, enxerga a cidade como espaço de sociabilidade, de manifestação da política efetiva, em que o espaço público é apropriado pela população, ou seja, como valor de uso.
A primazia da primeira concepção de cidade é evidente no governo de Márcio Lacerda, o que pode ser verificado nos pontos citados: a perseguição aos moradores de rua e artesãos nômades, a falta de diálogo com as comunidades Dandara, Camilo Torres, Irmã Doroty e Torres Gêmas, lançamento das parcerias público-privadas da saúde e da educação, proibição de eventos na Praça da Estação, cancelamento do FIT e outros (2).
O resultado da diversidade de ataques à soberania da população sobre o espaço público permitiu que o movimento se constituísse de setores muito diferentes, desde @s trabalhador@s da Feira Hippie, movimentos de ocupação urbana, artistas, até a classe média, sendo eles organizados e não organizados (no sentido mais convencional, sem desmerecer seu conteúdo ativista). A natureza da gênese do movimento impede qualquer afirmação de que ele tenha caráter conspiratório, como sugerem o prefeito e alguns setores que também se consideram de oposição.
O primeiro mérito do movimento está em seu caráter “espontâneo”, com todo o cuidado que a palavra merece, e não centralizado. Isso permitiu que a marcha se constituísse como um espaço livre, em que forças diversas, com posicionamentos, interesses e propostas diferentes pudessem se unificar em torno de um questionamento comum.
Além disso, o fato de a organização e divulgação ter se dado de forma descentralizada (sem desmerecer, é claro, quem se reuniu várias vezes para pensar e trabalhar na articulação da marcha) evidenciou a potencialidade das organizações autônomas e democráticas, sem uma submissão cega dos elementos a um comitê central organizador. E, de fato, as pessoas conseguiram enxergar no movimento esse espaço aberto de reflexão e discussão.
O segundo mérito, que é naturalmente decorrente do primeiro, foi a consequente unidade dos setores críticos. A marcha congregou uma série de movimentos distintos, incluindo os partidos PSOL, PCB, PSTU, alguns militantes do PT, movimentos anarquistas, como o MAL, e uma série de militantes de diversos movimentos sociais e organizações políticas, como as Brigadas Populares.
Faz-se necessário agora o levantamento de alguns pontos mais problemáticos do que foi a marcha. Esse documento deve ser lido como uma proposta de reflexão e compreensão do que foi construído após a marcha e o que pode ainda ser. Em outras palavras, um comentário fraterno que busca conciliar e unificar o movimento como um espaço reflexivo.
Comecemos com a própria temática. As mobilizações se manifestam com uma palavra de ordem de negação: Fora Lacerda. Dentro da perspectiva do conflito das diferentes formas de enxergar a cidade, o movimento identificou, como personificação da visão oposta, o prefeito Márcio Lacerda. Daí incorre uma série de contradições.
O caráter negativo da palavra de ordem por si só é incapaz de dar resposta aos problemas combatidos e a personificação colabora para a exaltação – com os vetores invertidos – do indivíduo, da imagem, o que leva à diluição do verdadeiro alvo e não permite uma reflexão mais aprofundada a respeito da natureza do próprio Estado e da política (que ainda é vista como momento de redenção). Trata-se, pois, de refletir sobre quais são os limites da marcha e os novos caminhos para que a luta possa continuar de forma mais clara e coerente.
A natureza da marcha, em que se espera a mobilização de um número grande de pessoas, exige que se identifique um “inimigo comum” que possa unificar pessoas radicalmente diversas. Até aí tudo bem. O problema está no momento em que essa identificação passa a obscurecer a raiz real do problema. É necessária uma reflexão crítica a respeito do tipo de governo que vem sendo adotado na cidade, que engendra um estado quase policialesco, do “choque de gestão”, do governante como administrador, da “política sem política” nas palavras de Zizek (3), e, para isso, é perigoso associar esse rol de problemas à figura de um só político.
Um raciocínio elementar que esteve presente em alguns momentos do decorrer da marcha foi de identificar as raízes desse tipo de administração à figura do Márcio Lacerda. Conseqüentemente, a substituição do prefeito sanaria esses males. Decorrem-se dois problemas. Em primeiro lugar, perde-se uma tendência geral da administração ao gerencialismo, que está presente em todos os âmbitos da federação e também em escala global, que nos conduz a questionar sobre o que é o Estado, a política e a burocracia. E, em segundo lugar, não percebe a limitação da própria política para lidar com esses problemas.
Não foi Lacerda quem inaugurou esse tipo de gestão. Dessa forma, quando se associa à imagem dele esse problema, deve-se ter em mente que estamos combatendo algo maior. Então, ao criticar essa lógica da política, deve-se também avançar para uma crítica ao governo estadual, que iniciou com Aécio Neves e continua agora com Anastasia, e ao governo federal, em que a presidenta Dilma Rousseff possui o mesmo perfil administrativo.
Além disso, deve-se ter clareza da limitação da política para lidar com os problemas que levaram ao surgimento da marcha. O Estado, espaço abstraído da vida do povo, onde se dá a política, é incapaz de responder a todas as necessidades do povo e sanar suas misérias. Também não se pode cair no engodo contrário, de que o Estado é imutável e “todos os políticos são iguais”. É claro que a via institucional é necessária, mas é também, definitivamente, limitada.
Isso significa que é importante questionar e discutir a prefeitura atual, mas a real transformação só pode surgir através de mobilizações sociais, que podem ter um caráter político, mas que nunca podem ter a política como um fim em si. Deve-se, então, reconhecer a importância de movimentos como a Praia da Estação, que cria um espaço democrático, de apropriação do espaço público, de realização da política efetiva, onde surgem dinâmicas de socialização, os germes visíveis do socialismo.
Em relação ao caráter negativo da palavra de ordem “Fora Lacerda”, deve-se agora refletir sua limitação. Após a marcha, o movimento, com suas reflexões, pode começar a delimitar contornos mais claros para suas críticas. Além de determinar a saída do prefeito, outra coisa deve surgir no seu lugar, ou seja, deve-se esboçar uma nova forma de governo, de sociabilidade e de relação econômica.
O combate à redução dogmática de qualquer luta social na luta de classes deve ser feito, ou seja, deve-se ter clara a pluralidade de campos e contradições – que se evidencia na própria construção do movimento. Mas, por outro lado, deve-se tomar cuidado com a redução oposta, que despreza a diferença entre esquerda e direita, decreta a morte da ideologia e reduz o homem a um “homo politicus ambidestro”, nas palavras de Daniel Bensaïd (4).
Para fugir dessa encruzilhada é preciso desenvolver as críticas, esboçadas acima, à natureza do Estado e da política, buscar revelar a lógica sistêmica da reprodução do capital – que se manifesta nas obras da copa, nos despejos e na própria forma como a política se dá.
Como afirmado acima, não podemos (nem devemos), reduzir todas as lutas da cidade na luta do combate ao capital – que estaria figurado na imagem de Lacerda. Mas a utopia da transformação carrega em si um potencial universalizante. E o momento da mobilização é o momento em que as diversas forças atuantes na cidade devem se unir em torno de um sonho comum – o comunismo.
Para isso devemos construir uma plataforma comum, em que caibam as mais variadas aspirações e que consiga elevar o patamar de sua crítica. Em outras palavras significa consolidar uma crítica anticapitalista – não mais antineoliberal, como se apresenta no manifesto do movimento – que dê resposta a todos os pontos de crítica levantados pelo manifesto defendendo uma sociedade sem opressões (de qualquer natureza, seja de gênero, raça ou orientação sexual), com valorização do trabalho artístico, acesso democrático à moradia, uma nova relação do homem com o ambiente natural, efetiva ocupação do espaço público, realização plena da política, mobilidade urbana, através de um transporte público, gratuito e de qualidade, além de ser uma sociedade sem classes, ou seja, ecossocialista. Tendo sempre a clareza do caráter inacabado e aberto de qualquer luta pelo socialismo, em que novas bandeiras e reivindicações devem ser logo incorporadas.
O balanço do movimento é positivo, pelo que ele conseguiu construir até agora e pelas perspectivas de desdobramento. Como afirma Rosa Luxemburgo em sua crítica à atuação dos bolcheviques na revolução russa de 1905:
“Organização, esclarecimento e luta não são aqui momentos separados, mecânica e temporalmente distintos, como num movimento blanquista, mas são apenas diferentes aspectos do mesmo processo.” (5)
Façamos, então, desse movimento um espaço de organização, esclarecimento e luta, onde os desafios e questões sejam solucionados no decorrer de seu surgimento. E devemos construir um espaço em que as pessoas possam discutir e colocar seus posicionamentos de forma livre e democrática, tentando consolidar um diálogo permanente que não se esvaia com o fim das mobilizações. Momento em que a crítica se eleva da terra ao céu.
(1) Para entender melhor a idéia de cidade como pátria, empresa e mercadoria, ler o artigo de Carlos Vainer: “Pátria, Empresa e Mercadoria” no sítio: http://www.mundourbano.unq.edu.ar/index.php?option=com_content&view=article&id=97&catid=87
(2) Para mais informações entre no sítio do movimento: http://www.foralacerda.com/
(3) ZIZEK, S. Bem-vindo ao deserto do real
(4) BENSAÏD, D. Os Irredutíveis
(5) LUXEMBURGO, R. Greve de massas, partido e sindicato.
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