quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Vida eclipsada em nada no cinema de Antonioni



Escrito por Cassiano Terra Rodrigues   
Quarta, 04 de Janeiro de 2012

Dos filmes do grande período criativo de Michelangelo Antonioni, O eclipse (L’Eclisse, Itália/França, 1962, dir. Michelangelo Antonioni) talvez seja o que mais claramente opera com o conceito filosófico do nada, conforme diz András Bálint Kovács, fundador do Departamento de Estudos de Cinema da Universidade ELTE, em Budapeste. O motivo principal do filme é o desaparecimento, como já o título o exprime claramente: um apagamento, uma desaparição, um esvaecimento da luz. Mas não uma desaparição qualquer. Antes e sobretudo, trata-se de uma desaparição humana.

A história divide-se em três pares mais ou menos ligadas entre si. Na primeira, Vittoria (Monica Vitti) rompe seu noivado com Riccardo (Francisco Rabal). “Dissemos tudo que tínhamos para dizer”, diz ela, que não consegue dar razão alguma para sua decisão. A única coisa que ela diz e repete o filme todo, sempre que é perguntada sobre seus desejos, é: “Não sei”. Depois dessa primeira parte, Riccardo desaparece da história. A segunda parte gira em torno de uma bolsa de valores onde trabalha a mãe (Lilla Brignone) de Vittoria, muito ocupada com suas ações para dar atenção ao rompimento do noivado da filha. Ali, Vittoria encontra um jovem e atraente corretor, Piero (Alain Delon), com quem tentará uma nova história de amor. Não são as relações humanas que interessam agora, mas os acontecimentos da bolsa: a quebra do mercado e a bancarrota das pessoas. A única coisa que a mãe de Vittoria tem a dizer é que lamenta o rompimento do noivado porque agora Riccardo não poderá mais ajudá-la financeiramente. A narrativa é interrompida quando Vittoria vai visitar um amigo recém-chegado do Quênia. A terceira parte conta a história da relação fracassada de Vittoria e Piero. Ambos parecem prontos para uma nova relação, mas Vittoria sempre recua. Como antes, ela não consegue dizer por que.
Sempre indecisa e incerta, Vittoria não consegue reunir forças emocionais para satisfazer Piero. Ele, por sua vez, só deseja sexo, nenhum interesse num contato emocional ou intelectual maior. Na seqüência final, termina a relação entre os dois. Nela, não vemos, como na primeira parte vimos, um rompimento – nenhuma discussão de noite inteira, nenhum diálogo, mas, como que num mero esvair, a relação termina num vazio. Nessa seqüência, do ponto de encontro onde Vittoria e Piero não estão, podemos ver muitas imagens, mas o que ressalta é a ausência das pessoas. Não vemos a rua, não vemos o poço, vemos a ausência dos amantes. São imagens de nossa expectativa frustrada. Ali, o que vemos é seu não-estar-ali. Em outras palavras, na rua sem eles, o que vemos é um nada produzido por sua ausência.


Na filosofia antiga, nada era não-ser, isto é, mera ficção, algo sobre o qual sequer se podia falar: o ser é, o não-ser não é. Mas é possível compreender o nada como algo inextricavelmente ligado à existência das coisas. Como Nietzsche, por exemplo, para quem o nada resulta do vazio deixado pelas forças e poderes sobre-humanos que foram expulsos do campo de conflito da vida no mundo moderno. Outrora, o mundo era encantado e cheio de essências divinas; depois das Revoluções do século XVIII e de Darwin, no espaço intermediário entre os indivíduos resta um vácuo que o sujeito singular não consegue, sozinho, preencher: o nada. Compreendido nesse contexto, o nada se torna a sombra dos poderes metafísicos desaparecidos, a medida da impotência do indivíduo singular abandonado no mundo.

É a falta da transcendência que caracteriza o vazio das vidas no filme de Antonioni? Parece que não. O mundo de Vittoria e Piero já é um mundo sem deuses, desencantado. No entanto, a vida continua nele. O nada no filme parece resultar das próprias vidas singulares, e não do espaço vazio deixado após a dissipação da divindade.

Sartre dá concretude à noção, dando lugar central ao nada nas relações humanas e na relação do ser humano com o mundo. O nada não é outro mundo, nem está além de nosso mundo. O conceito traduz situações cotidianas nas quais o ser humano está só, desapontado pelas suas crenças e sem perspectivas, buscando desesperadamente algo sólido numa situação de abandono e falta de identidade. Sartre situa o nada direto no mundo, “no coração do ser, como um verme”; não se trata de circunscrever uma dimensão lógica ou ontológica; trata-se, antes, de questionar a contingência da vida humana.

Sartre diz: “é o ser humano que dá à luz o Nada”. Quando algum desejo ou expectativa de alguém é frustrado, aparece o nada. Quando vemos uma sala de aula vazia, não sentimos falta de um nada em geral, são os estudantes e os professores, e não outra coisa, que fazem falta. Quando procuro por um amigo num café, mas encontro outro, a presença deste indica diretamente a falta do outro. Há uma falta entre o que de fato é, o que se concretizou e o que poderia ter sido. O nada, assim, é indicado pelo ser, de forma que tudo que existe pode servir como mediação para o que não existe, mas poderia ter existido. O nada é o não-ser de algo possível ou que deveria ter sido, mas não foi – algo específico, particular, cuja existência concreta foi impedida por algum motivo. O que está em jogo é a expectativa humana, a frustração humana, na lida com o mundo das coisas concretas, ou mesmo o que resta na e da memória humana. Por isso, o nada não é uma categoria meramente negativa, ao contrário do que pensa o senso-comum. Todas as expectativas, todos os desapontamentos, todas as memórias estão relacionados com conteúdos concretos. Se descubro minha carteira vazia, diz Sartre, ela não está vazia em geral, mas está faltando certa quantia esperada de dinheiro. Tomar consciência disso é, para Sartre, definidor da liberdade.

Entre o que foi e o que poderia ter sido há um espaço vazio, no qual o homem é liberado de seu passado e tem de escolher. O passado não é mais, não se pode mudar o que já foi. Mas, tomando base na existência concreta do presente, é possível fazer um futuro diferente, é possível construir o que ainda não é. O nada, assim, é a própria definição de liberdade, é o que fecha o passado antes do futuro, libertando a ação humana ao âmbito do possível: “na liberdade, o homem invalida o passado e cria seu próprio nada. (...) O nada é a liberdade intercalada entre passado e futuro”. A livre escolha é baseada no nada, porque obriga o homem a escolher sobre uma única base: sua própria existência, nada mais. Assim, o conceito sartriano de nada exprime algo fundamental na experiência moderna do mundo: o homem só, liberto de seu passado, livre do peso das tradições que as gerações posteriores tinham de suportar, é obrigado a fazer escolhas e a cuidar de si mesmo sozinho. Ao mesmo tempo em que enfrenta a falta de valores historicamente consolidados e sublimes, está exposto à liberdade dos outros, que, como ele, estão sós no mundo.

O “autêntico indivíduo moderno” é alguém que aceita o nada como o que há de fundamental em sua liberdade e desiste de buscar valores metafísicos tradicionais: encarando o nada de peito aberto e confiando apenas em si mesmo e na sua capacidade de agir, o indivíduo moderno é livre. O nada, assim, significa a aceitação da finitude, é aceitar a morte nos termos da vida, sem recorrer a explicações transcendentes que a contrariem. O nada é a morte dentro da vida – a própria vida. Na filosofia moderna, o indivíduo é alguém que pode ser independente do mundo à sua volta. Para Sartre, o indivíduo é alguém que, ao aceitar a insignificância de sua vida, pode se libertar da angústia causada pelo nada e agir, e não meramente aceitar uma vida nadificada. É assim que a ação humana adquire valor – não há valores fixados a priori, transcendentes à condição humana; há os valores originados da ação humana, valores que os homens criam quando agem, de maneira contingente. Eis a nossa diferença para com a leitura de Kovács, que enfatiza mais o fato da aceitação do nada, em vez da capacidade humana de agir com base numa tomada de consciência frente ao nada. O pessimismo ou conformismo de Kovács, no entanto, ajusta-se melhor ao filme de Antonioni. Voltemos a ele.

O filme é construído sobre uma série de desaparições. A primeira pessoa a desaparecer é Riccardo, logo no começo. Depois, há um minuto de silêncio para homenagear a morte de alguém na bolsa de valores. Em seguida, o dinheiro desaparece com o crash e grandes fortunas desaparecem repentinamente. O carro de Piero é roubado. O próprio Piero desaparece pela primeira vez: Vittoria se despede dele e começa a ir embora. De repente, ela pára, olha para trás por alguns segundos, e vê que Piero não está mais ali. O fim da história chega com o desaparecimento sem mais das personagens: nem Piero, nem Vittoria aparecem para a despedida. E, no último segundo, a luz do sol se apaga.

Para Antonioni, esse esvaziamento das relações humanas não tem nada de natural. Não se pode ser indiferente, é dramático viver num mundo desprovido de sentido, no qual “a honestidade e a beleza tendem a desaparecer”. Nas suas palavras: “o vazio de fato do indivíduo é para mim um drama”, e é esse drama que ele filma em O Eclipse. Segundo Kovács, Antonioni filma o drama da desaparição: a capacidade de amar das personagens desapareceu, sua capacidade de realizar seus desejos desapareceu, elas tomam consciência disso, mas nada conseguem fazer para evitar esse desaparecimento. Mais ainda do que Kovács, afirmamos: há uma cisão existencial mais radical em Antonioni. Para Kovács, Vittoria sofre porque, embora tenha consciência do que lhe falta, não consegue agir para mudar a situação: “Eu queria não ter te amado ou te amar muito mais”, diz ela a Piero. Incomoda, sim, a incapacidade de agir de Vittoria – justamente o contrário do que apregoava Sartre. Mas não é só uma cisão entre desejo e poder – ou, justamente, impotência – que a angustia.

Ao escancarar a natureza dramática de uma situação esvaziada de valores, Antonioni poderia cair na nostalgia de um mundo pré-moderno não reificado ou ainda “encantado”, prenhe de alguma forma de valor ou mística da pessoa humana que a civilização industrial danifica. De fato, a causa da infelicidade das personagens parece mesmo ser a falta de valores num mundo dominado pelos critérios do mercado. Mas todo voluntarismo se esgotou, não há possibilidade de uma reforma do mundo: as pessoas estão se esvaindo em sua própria situação. Vittoria está esvaziada de sentimentos. Assim como Riccardo, que não quer a separação, mas também não luta muito pelo relacionamento; sua mãe só pensa nas perdas financeiras; e Piero só pensa em lucro, carros e sexo. Todos estão presos em um quietismo, não conseguem agir para mudar e, assim, o nada se torna uma força incomparavelmente mais forte do que o desejo de amor das personagens. Eis a cisão: o verme do nada corrói as pessoas de dentro; esvaziadas, elas mesmas desaparecem, dissipam-se em nada. Para Sartre, essa situação existencial, embora cabal, é somente isso: uma situação, e, portanto, contingente. Para Antonioni, parece não haver mais esse tanto de otimismo. A cena final, a rua vazia, um nada provocado pelas próprias pessoas que fizeram aquela história, sua ausência ali indicada pelo que construíram. Essa é a história que estamos construindo para nós mesmos?

Cordiais saudações e votos de plenitude em 2012.

* * *

BIBLIOGRAFIA: Dois textos de Sartre embasam o texto acima: a conferência “O existencialismo é um humanismo”, ótima introdução ao seu pensamento; e sua obra máxima O ser e o nada. András Bálint Kovács tem alguns artigos sobre Sartre e o que ele chama de “melodrama moderno” facilmente encontráveis na Internet; baseamo-nos em seu livro Screening Modernism: European Art Cinema, 1950-1980 (Chicago University Press, 2007). As relações de Sartre com o cinema, de outro ponto de vista, são analisadas por Dominique Chateau em seu belo Sartre et le cinéma (Biarritz: Les Éditions Atlantica-Séguier, 2005).
 
Cassiano Terra Rodrigues é nada mais que mero professor de Filosofia na PUC-SP.


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