Leandro Konder
Os brasileiros estão jogando cada vez mais. A prática das apostas ganha novos adeptos a cada dia. O jogo do bicho prospera. O Governo federal e os Governos estaduais promovem suas diversas loterias. Muita gente faz fila para arriscar a sorte na sena, na quina da loto ou nas numerosas raspadinhas.
O fenômeno está preocupando muitos setores da sociedade. Nos círculos conservadores se fala, com escândalo, na "generalização da jogatina" e se adverte contra a expansão da "influência perniciosa do vício". Outras áreas lamentam que os poucos recursos economizados pelos assalariados sejam investidos numa aventura, em vez de serem sabiamente poupados e postos a render dividendos.
Mesmo entre os que enxergam os aspectos desagregadores do jogo, entretanto, há muitos espíritos críticos que procuram compreender o que está acontecendo e repelem a tentação autoritária do recurso simplista a medidas de repressão.
As proibições com freqüência são dolorosas, traumáticas e inócuas. Em lugar de tentar resolver os problemas prendendo e arrebentando, devemos procurar discernir suas raízes históricas e culturais. Devemos ter a coragem de indagar se o poder de atração do jogo não tem a ver com o tipo de sociedade que foi criado aqui, ao longo da nossa história.
A questão – note-se – não é exclusivamente brasileira: é fácil percebermos que ela tem uma presença marcante na América Latina. O grande escritor argentino Jorge Luis Borges já escreveu uma vez: "Yo soy de un pais donde la loteria és parte principal de la realidad". As sociedades do nosso continente nasceram, todas, sob o signo da aventura: os europeus que destruíram as culturas indígenas e importaram negros escravizados apostavam no enriquecimento rápido.
No caso brasileiro, as condições se agravaram enormemente com a modernização autoritária e a sucessão das negociatas. A população tinha a impressão de que as elites haviam transformado a sociedade num imenso cassino. Entre os grandes trambiqueiros do nosso país, quantos foram exemplarmente punidos? E quantos permaneceram (e permanecem) impunes?
Obrigado a dar duro para sobreviver, o trabalhador vem observando esse espetáculo e tentando extrair dele sua lição. A experiência quotidiana e o sufoco do salário arrochado lhe dizem com muita eloqüência que no mundo do trabalho quase não há espaço para a esperança. O sonho, expulso pela remuneração aviltante, emigra para o jogo.
A paixão pelo jogo cresce paralelamente à constatação de que o trabalho está caracterizado como ocupação de otário. O que conta, para o trabalhador, não são os discursos em que os políticos e os empresários o cobrem de elogios: é o salário que lhe mostra o que ele realmente vale aos olhos do Estado e do patrão.
O homem do povo, o homem comum, está valendo pouco na nossa sociedade. Quando ele joga no bicho ou na loto, aposta no futebol ou nas corridas de cavalo, é claro que não está contribuindo, concretamente, para superar a situação frustrante para a qual foi empurrado, como vítima, pelos donos do poder político e econômico.
A "fézinha" só pode resolver o problema de um ou outro no meio de muitos milhares. No entanto, o movimento que leva a pessoa a jogar manifesta, também ao lado da ilusão, certo inconformismo diante do vazio do presente. Quem joga, afinal, ainda está mostrando que é capaz de ansiar por um futuro melhor.
Como se pode canalizar esse inconformismo e essa ânsia de um futuro mais bonito para uma ação historicamente mais fecunda do que a febre das apostas? Como mobilizar coletivamente as energias que se dispersam na aventura individualista do jogo?
Creio que a direção política em que deve ser buscada uma resposta democrática para essas indagações passa, necessariamente, por uma enérgica valorização do trabalho – e dos trabalhadores.
Leandro Konder retirado de http://www.socialismo.org.br/portal/questoes-ideologicas/83-artigo/1944-o-trabalho-e-o-jogo
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